SOMBRAS DA NOITE – Parte 1

Lá fora, a chuva desabava nos telhados, e ninguém ousava sair de casa tão cedo. O murmúrio do vento ecoava na noite, quando Teresa acordou demoradamente. Olhou para o rebento que dormia com cara de anjo na confortável alcofa, ora preparada na véspera para a jornada que se seguia. Pouco depois, a jovem mãe abandonou a casa, esgueirando-se diretamente para o táxi, que a esperava mesmo à porta da sua casa, prosseguindo a marcha por entre a neblina e o negrume da noite. A rua estava deserta, e detinha vários candeeiros fundidos, o que lhe abonava um aspecto sombrio e triste. O transporte deixou-a sensivelmente, a trezentos metros do seu destino, e nesse local, Teresa pediu ao motorista para que a aguardasse uns quinze minutos, pois voltaria nesse instante. Quando a mulher meteu o pé fora do carro, percebeu que a chuva ainda não cessara, o que a obrigou a correr até ao largo da Igreja, que era o seu destino. Ali, abandonou a alcofa que trazia com ela, e juntamente deixou uma missiva do bolso da sua gabardina encharcada, e encafuou-a, por entre as mantas de lã, que agasalhavam a bebê. – Ficas bem, ficas com Deus! – Murmurou ela, obtendo como resposta, um sorriso por parte da menina, que era sua filha. Mas Teresa não se deteve, e logo, logo saiu dali a correr. Afastou-se a chorar, só Deus saberá. Contudo, o sorriso da menina apenas durou alguns minutos, pois começou a ficar com frio, e assustada, dispôs-se logo a choramingar. O pranto acordou vários moradores, que aconchegados nos seus roupões, se acercaram das janelas das suas casas, apercebendo-se que se tratava de um bebê ali abandonado. Sob a arcada da abadia, uma imagem de Jesus, parecia orar pela criança desprotegida. Bastaram alguns minutos para se criar algum rebuliço em volta da criança, que, acomodada na sua alcofa, fitava todos os aldeões, que dela se abeiraram para vê-la. – Esperem!… – Acudiu uma mulher gorda – Deixaram um envelope aqui, no meio dos cobertores. – Está endereçado a quem?… – Indagou um homem idoso, que fumava cachimbo. – Ao Padre da paróquia… O padre António! – Redargüiu a mulher gorda, que já se preparava para abrir o subscrito, detendo-se quando ouviu uma voz familiar. – Que clamor é este aqui, à porta da casa do Senhor? – Uma voz grave e autoritária rompera pelo meio do alvoroço. – O que se passa aqui? – Oh, senhor Padre… – Balbuciou a mulher, que detinha a alcofa nos braços – veja esta pobre criança, foi abandonada aqui, ao frio… – Deixe ver a criança! – Bradou o clérigo, que segurando a criança pelo colo, penetrou pela igreja adentro, trancando a porta de seguida, não permitindo que mais ninguém entrasse. Junto ao altar, pegou-lhe ao colo e olhou-a demoradamente, ao que a bebê respondeu apenas com o seu olhar inocente. -Tens uns olhos azuis lindos!… Mas, misteriosos. – Concluiu. – Deixa cá ver, qual foi à desculpa que deram, para te abandonar ali ao frio… – murmurou o padre António, cortando meigamente o envelope. “Querido Padre, Deixo ao cuidado da Igreja, a vida e educação deste meu rebento. Que Deus me perdoe, pois pecado maior do que este que cometo, não existe, não senhor! Mas rogo que compreenda. Fui violada por um desconhecido. O médico não me permitiu o desmanche, e eu não tenho meio de criar esta inocente criança. Assim, deixo-a com Deus, para que a proteja, porque eu rezarei por ela todas as noites. “Teresa” Na manhã seguinte, a menina fora vista pelo médico da Aldeia, que não lhe diagnosticou nada de anormal e, enquanto não chegavam os elementos dos serviços sociais para o cumprimento das formalidades legais, a menina, a quem já tinham “batizado” de Virgínia, ficou ao cuidado de duas freiras, que não se cansavam de mimá-la. Aquela era a última noite que Virgínia passava em casa das irmãs, antes de ser levada para destino incerto (pois os serviços sociais, é que decidiam). As irmãs, Lúcia e Fátima, estavam à janela do quarto com a criança, quando inesperadamente, esta se lançou num choro apavorante, que as deixou muito embaraçadas, sem saber o que fazer, pois em três dias, nunca tinham visto a pequenina naquele estado. Chorava sem parar, esperneava com uma força descomunal, e nem sequer permitia que lhe pegassem mais ao colo. Em desespero, Fátima decidiu chamar o padre António, para que este decidisse, o que se havia de fazer. E lá foi Fátima, a correr até a Igreja, onde teimosamente ficava o aposento do Padre. Não posso precisar quanto tempo passou, mas julgo que o relógio da torre tinha acabado de dar as dez badaladas, quando a voz da Irmã Fátima ecoou tenebrosamente pelas paredes da Igreja. -Oh, Meu Deus!…Oh, Senhor Jesus Cristo… Paulatinamente, as janelas das casas começaram a piscar como vaga-lumes, e as persianas a abrirem-se, fruto da curiosidade das pessoas, que logo acorreram às varandas para saber o que justificava tal pranto, tão pavoroso da irmã. De joelhos junto ao catre do Padre António, Fátima chorava angustiosamente – O padre estava morto. Foi numa radiosa manhã que Virgínia conheceu, aquele que seria o seu novo lar: um orfanato situado numa aldeia dos arredores de Lisboa. Era uma criança muito bonita. Tinha uns olhos azuis luzidios, e um cabelo ruivo e liso, que adornava um rosto afável e oval. Não costumava divertir-se muito com as outras crianças, pois achava-as muito “infantis”, principalmente quando brincavam às escondidas e tinha por hábito esconder-se na dispensa do orfanato, que era muito escura. E Virgínia não suportava o escuro. Virgínia não era a “predileta” das educadoras do estabelecimento de caridade, pois a inocente “carregava” com ela, uma história maldita, cuja ignorância das pessoas, levava-as a crer que a pobre criança ficara “possessa”, na noite em que o padre cessara a sua existência terrena. A verdade é que Virgínia era uma miúda muito diferente das outras, podendo considerar-se, estranha mesmo. E para que não restem suspeitas acerca desta minha afirmação, passo a explicar: Enquanto as restantes crianças desenhavam casas, pessoas, e paisagens da natureza…Virgínia não desenhava nada. A sua folha de papel era inundada por tinta preta, ao que ela, lugubremente afirmava, serem os seus sonhos durante a noite; enquanto as outras crianças dormiam a sesta, Virgínia negava-se sempre a fazê-lo, e durante o repouso, várias vezes fora encontrada com velas acesas junto ao beliche, o que, numa certa noite, até causou um breve, mas desagradável incêndio. Não havia explicação para estes desvarios da pequena órfã. Numa tarde, todas as crianças brincavam no pátio com bolas e arcos, quando inesperadamente, todos pararam a olhar para Virgínia, que ficara paralisada nem uma estátua, com uns olhos gélidos e sem expressão, alvejando a rua em frente, abstraída de tudo o resto. Imprevisivelmente, escutou-se um chiar de pneus, e de seguida um grande estrondo de vidros a partirem-se, tudo com grande violência. Não restavam duvidas, um homem fora mortalmente atropelado, mesmo em frente ao colégio! Prontamente se gerou uma grande confusão em redor do homem que jazia ali no meio da estrada, mesmo em frente ao orfanato de onde as crianças foram logo recolhidas para dentro. Não tardou para que todas se lançassem a atirar as culpas do acidente à “estranha” Virgínia, que instantes antes, permanecera a olhar fixamente para o pobre homem. Estranhamente, Virgínia não se lembrava de nada, aliás, ela nem sequer conseguia falar, e logo fora vista por um psicólogo, o doutor Carlos, que não lhe diagnosticou nada de anormal. “Apenas uma ligeira desordem no desenvolvimento cognitivo” escrevinhou ele, no relatório deixado nas mãos da diretoria do orfanato, que já se mostrava incomodado com aquela criança tão estranha. A verdade, é que numa aprazível tarde de Maio, Virgínia foi adotada. Uma família, da qual eu posso assegurar, que tinha algumas posses, levou-a com eles, e sob um semblante acolhedor, partiram no seu carro moderno e comprido. Virgínia ficou deslumbrada com dimensão da casa para onde ia viver, e mais aturdida ficou, quando pôde observar o seu quarto, que era maior do que dormitório do orfanato de onde viera. O homem, que se tornara seu pai adotivo, era um respeitado industrial têxtil, e a sua mãe adotiva, uma famigerada artesã e pintora de renome. Para perceber a história da adoção de Virgínia, recuemos dez anos atrás, quando o casal partilhava a sua imensa mansão com a sua filha biológica, de nome Isabel, que inexplicavelmente começou a sofrer de uma doença rara, que lhe paralisou todos os membros do corpo, incluindo a parte cerebral, que lhe levou a vida. Desde aí, o casal Aristides e Simone Fonseca não conseguiram enfrentar o vazio que lhes irrompeu pela casa, e lhes avassalou alma. Passado um ano, Simone foi informada pelo seu médico, de que se tornara estéril devido à depressão que sofrera, pela perda de Isabel, e foi então que decidiram adotar uma criança. Todavia, o casal perfilhou uma regra para tal decisão. A menina que eles haviam de escolher, teria de se assemelhar à perecida Isabel. Assim, o casal Fonseca visitou vários lares de adoção, até que descobriu uma menina de cabelos ruivos e olhos azuis luzidios no meio daqueles miúdos órfãos, e assim que se entreolharam, não tiveram dúvidas de que, aquela seria a criança que havia sair da porta com eles. A família Fonseca vivia numa “cottage”, cuja moradia de estilo rústico era composta por dois andares, uma cave e um sótão. No seu frontispício, estendia-se um imponente e viçoso jardim. No décimo segundo aniversário de Virgínia, Aristides e Simone decidiram convidar alguns amigos e familiares mais próximos para jantar, onde celebrariam o aniversário dela. Um dos casais convidados tinha um filho chamado Victor, que era um pouco alienado e estranho. Durante o Jantar, ela sentiu um calafrio estranho, transpassar-lhe a espinha e seguidamente sentiu-se indisposta, o que a levou a pedir aos “pais” a sua permissão para sair da mesa, ao que estes aquiesceram. Virgínia subia as escadas que a levavam ao seu quarto, tencionando deitar-se, pois a sua indisposição era profunda. Sentia uma náusea agonizante, e temia já ter sofrido aquela náusea antes, embora não se lembrasse quando. Virgínia penetrou no seu quarto, e como era hábito, deixou uma luz acesa. Deitou-se na sua cama e fitou as paredes alvas do seu quarto. Subitamente apercebeu-se da presença de alguém no quarto. Era Victor, e fitava-a com um rosto maligno, enquanto caminhava vagarosamente na sua direção. – Sabes, Virgíniazinha…Eu sempre gostei de ti. Agora vou papar-te!… – Rosnou Victor, com uma voz rouca e com os olhos desorbitados. – Não te aproximes Victor, senão… – A boca de Virgínia foi tapada pelas mãos vigorosas de Victor, que a seguir a derrubou para o chão, abafando-lhe o corpo franzino, com o seu, pesado e inchado. Em sufoco, tentou gritar, mas a mão de Victor era forte demais. Victor derrubou-a contra o soalho do seu quarto e manteve-se em cima dela, tentando violá-la. A pobre rapariga tentava gritar e lutar, mas sentia que não tinha força suficiente para retirá-lo de cima dela. Inesperadamente, os seus olhos testemunharam algo realmente sinistro, a penetrar no quarto.
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